Terminei recentemente o livro “Dentro do Nevoeiro”, escrito por Guilherme Wisnik e editado pela Ubu. O texto é o resultado da pesquisa de doutorado do autor e levanta uma reflexão sobre o estado de incertezas do mundo, utilizando referências da arquitetura, da arte e da filosofia.
O livro inicia estabelecendo um contraponto entre a arquitetura moderna e contemporânea. Enquanto o moderno tem como característica a a honestidade dos materiais, a arquitetura contemporânea faz uso de superfícies opacas. O vidro, antes transparente, tornou-se nebuloso através de películas, como filmes e serigrafias. Na opacidade, há o mistério daquilo que não é mostrado. Kazuyo Seijima, do SANAA, é uma arquiteta que trabalha em seus projetos as qualidades reflexivas do material, no lugar da transparência. Isso é evidente no louvre lens, por exemplo.
Wisnik argumenta que a nuvem se tornou uma metáfora recorrente do nosso tempo, utilizada tanto na tecnologia de dados quanto no mercado financeiro. A nuvem chegou a ser materializada na arquitetura no emblemático ‘blur building’, projeto do Diller Scofidio Renfro para a expo 2002 na Suíça. Os visitantes, vestidos com capas de chuva, cruzavam uma ponte para visitar a exposição que se revelava aos poucos, no meio da neblina.
Outros exemplos citados por Wisnik que seguem essa tendência de nebulosidade na arquitetura são as galerias Kunsthaus (Bregenz), de Peter Zumthor, a Galeria Goetz (Munique), de Herzog e De Meuron, e a Fondation Cartier (Paris), de Jean Nouvel. São projetos que utilizam os revestimentos das fachadas para ‘iludir’ o visitante, enganando-o sobre como a estrutura funciona ou confundindo-o sobre onde o prédio termina e o entorno começa. Os três foram destaques na exposição ‘Light Construction’ no MOMA, em 1995.
Em seu texto “Sobre Materiais”(1988), Álvaro Siza Vieira lamenta a dissociação da forma e da matéria, uma consequência da globalização que ele observou à medida que o seu processo projetual se tornou mais internacional. Já arquitetos como Jean Nouvel e Herzog et de Meuron demonstram maior otimismo em explorar as qualidades técnicas dos materiais e os seus “segredos”.
Por um lado, vivemos a era do borramento mas também a da nitidez e da hiper-realidade. Hoje, cada um anda com uma câmera profissional no bolso. Em seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin fala sobre a relação do homem com a lente, como as lentes fotográfica e cinematográfica podem revelar uma verdade sem disfarces. Benjamin expõe também uma preocupação com a perda da distância entre o homem e a obra de arte. Com o aumento da escala, como ocorre no cinema, e com a imersão ou interação direta do observador com a obra, há uma aproximação que interfere na sua análise crítica. A lente, localizada entre o homem e o objeto, permite o distanciamento necessário para desvelar a verdade. Esse conceito é retratado no filme “Blow-up”, de Michelangelo Antonioni, onde, através da revelação do filme fotográfico, o fotografo também “revela” um crime.
Um artista que também trabalha o borramento em suas pinturas é o alemão Gerhard Richter. A partir de imagens retiradas dos jornais ou até mesmo fotos de família, Richter criava as suas telas e posteriormente borrava a tinta propositalmente, levantando assim considerações acerca da memória e do esquecimento, entre outros temas.
Michael Wesely, fotógrafo alemão, desenvolveu uma tecnologia para tirar fotos de super exposição. O obturador da câmera fica aberto por longos períodos, chegando a meses. Tudo o que é capturado em movimento fica borrado ou some na imagem final enquanto os objetos estáticos aparecem com nitidez. “Em Wesely, a perturbação da nitidez das cenas lança luz sobre o fato de que toda imagem sintética é ilusória, pois carrega sempre inúmeras dimensões ocultas que não chegam a nós, ou que preferimos não ver.” (Wisnik)
Há um capítulo no qual Wisnik elabora sobre como as imagens mais espetaculares das últimas décadas – seja a queda do muro de Berlim ou o ataque às torres gêmeas – são imagens de demolição e não gestos construtivos. Ele ressalta inclusive uma curiosa coincidência: O arquiteto do antigo World Trade Center, Minoru Yamasaki, foi o mesmo arquiteto que projetou o complexo habitacional Pruitt-Igoe, em Saint Louis. Erguido durante o auge do modernismo, o complexo se tornou um símbolo do abandono, pobreza e da insegurança urbana, o que levou à sua eventual demolição nos anos 70. A sua implosão se tornou um marco, representando o fim da arquitetura modernista.
Com a crise do movimento moderno, muitos teóricos voltaram para a história ou para outros signos de comunicação em busca de soluções para as cidades pós-modernas. Esse foi o o caso do “Aprendendo com Las Vegas“. A pesquisa de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour exerceu uma forte influência na formação de Rem Koolhaas, que em 1976 lançou “Nova York Delirante”. Neste livro, ele fala sobre a cultura de congestionamento e do espetáculo urbano. Em dado momento, ele explica que os arranha-céus se tornaram tão densos que a proporção entre a área da fachada e o volume do edifício diminuiu drasticamente. Conceitos de ventilação e iluminação natural não são mais definidores e a fachada não reflete portanto a honestidade de outrora. O interior do edifício adquiriu tal complexidade que passou a replicar a experiência urbana por conta própria. « Uma cidade na qual se verifica uma progressiva indistinção entre espaços públicos (ruas, calçadas, estações de metrô) e espaços comerciais (lojas de departamentos), num híbrido inquietante de interioridade e exterioridade. (Wisnik, pg.291)
Ainda na temática da destruição, Wisnik escreve sobre Marshall Bernham e a sua reflexão sobre o desenvolvimento sombrio e destruidor na obra “Fausto”, de Goethe. O marco zero da era fáustica nas cidades do Ocidente, em termos históricos, é a reforma em Paris, conduzida pelo Barão de Haussmann entre 1853 e 1870 (uma reforma que foi extremamente violenta). O urbanismo higienista de Haussmann expulsou as classes populares das áreas centrais para regiões distantes, e tornou a cidade muito menos suscetível a manifestações populares e a guerrilhas de barricadas.
O sociólogo francês Jean Baudrillard considera que a partir dos movimentos de 1968, a violência deixou de ser explosiva para ser implosiva. O crítico Pedro Duarte fala de uma violência que se tornou desapaixonada, o que, segundo Giulio Argan, seria um efeito do consumismo. Já para Wisnik, essa violência abafada, desapaixonada, entranhada na sociedade como algo cotidiano, corriqueiro e até mesmo banal, “é a fonte do ofuscante nevoeiro sob o qual vivemos”
“É sintomático que eventos globais de massa, os mais variados tenham se tornado progressivamente, em essência, grandes negócios imobiliários. Refiro-me aqui, claramente, a eventos originalmente esportivos, como a Copa do Mundo de futebol e os Jogos Olímpicos, que a partir dos anos 1990 começaram a abarcar uma série inteiramente nova de exigências técnicas e funcionais, com seus complexos aparatos logísticos, que redundaram em grandes obras de arquitetura e infraestrutura, acompanhadas de imensos custos, e também, por que não, de imensos lucros”. (Wisnik, p.341)
Assim como já foi falado sobre a aproximação entre a obra de arte e o seu observador, sobre uma maior semelhança entre o espaço interno e externo dos edifícios, o mesmo ocorre com os museus. “Se por um lado, o museu veio de fato se dissolvendo no mundo, como a arte na vida, o próprio mundo, por outro lado, veio também se museificando com o turismo, a publicidade e a economia de serviços, segundo uma lógica de equivalência entre realidade e modelo.” (Wisnik, p. 405).
Estas aproximações estão presentes nas instalações do artista Olafur Eliasson, onde podemos observar a superação de polaridades como o selvagem e o domesticado, o público e o privado, o técnico e o orgânico. “A grande questão contemporânea é a progressiva fusão das duas formas de representação que foram separadas ao longo da história: a representação da natureza e a representação das pessoas em sociedade, isto é, a separação entre coisas e pessoas, ou entre ciência e política.”
Em sua conclusão, Guilherme Wisnik fala como esse estado de nebulosidade pode assumir tanto aspectos negativos quanto positivos. Apesar da falta de clareza, “a poética do embaçamento é a que melhor se opõe ao regime de nitidez das imagens-fetiche que alimentam a “sociedade da hipervisibilidade na qual vivemos“. Estamos cegos de tanto ver, e o afastamento, nem que seja parcial, pode nos ajudar a entender melhor esses tempos tão opacos.
“Dentro do nevoeiro” é uma leitura fascinante e riquíssima em referências. Trouxe aqui uma pequena amostra dos temas que mais chamaram a minha atenção, mas ainda há muito mais. Para quem se interessou, recomendo a leitura. Outra dica é ouvir a entrevista do Guilherme Wisnik no podcast Ilustríssima Conversa.