Biennale Architettura Venezia 2023 – Giardini
14/09/2023

Essa edição da Bienal de Arquitetura de Veneza teve a curadoria de Lesley Lokko, arquiteta ganense-escocesa e presidente do African Futures Institute (AFI). Sob o tema ‘laboratório do futuro’ (laboratory of the future), a Bienal 2023 reflete sobre possíveis soluções para grandes desafios, como a crise climática, e para questões como o anticolonialismo, o racismo e a diáspora africana.

A exposição principal da mostra coloca o continente africano como protagonista na busca por soluções para o futuro, dando destaque aos trabalhos e pesquisas de arquitetos africanos ou afrodescendentes. Com isso, foram destacadas a narrativas geralmente esquecidas ou pouco representadas nestas mostras internacionais, palco de discussões historicamente mais eurocêntricas.

A Bienal de Veneza se divide em dois segmentos principais – o Arsenale e o Giardini (Jardim). Neste texto, falo sobre o Giardini que, além de trazer uma parte da exposição principal, inclui os pavilhões dos países. Destaco a seguir alguns que eu visitei, organizados por ordem alfabética.

Alemanha

A ocupação do pavilhão alemão foi organizada por um coletivo, formado pelos editores e equipe da revista ARCH+, além de dois escritórios de arquitetura: SUMMACUMFEMMER e BURÖ JULIANE GREB. A intervenção incluiu várias partes. Primeiramente, ainda na área externa, foi construída uma rampa em arco, que proporciona acessibilidade ao pavilhão que até então era acessado apenas por degraus. Um elemento temporário que será incorporado permanentemente.

Nova rampa confere acessibilidade ao pavilhão

No interior, os organizadores optaram por manter os vestígios da intervenção da artista Maria Eichhorn, produzida para a Bienal de Arte de 2022. Eichhorn descascou as paredes e quebrou parte do piso, revelando as entranhas do edifício, os diferentes momentos e intervenções às quais o prédio foi submetido nas últimas décadas. Seu trabalho evidencia uma história política que deixa marcas na arquitetura. Construído em 1909, este era originalmente chamado de ‘Pavilhão da Bavária’. Foi renomeado ‘Pavilhão Alemão’ em 1912 e, em 1938, foi reformado para refletir uma estética fascista. Traços do estilo permanecem até hoje.

Sobra de materiais revela excesso das mostras internacionais

Inspirado pelo movimento Instandbesetzung, que ocorreu em Berlim nos anos 80 e combinava o movimento de ocupação ‘squat’ com manutenção, a proposta do coletivo era fazer deste um espaço vivo, um local para encontros e debates combinado com ateliê e estoque de materiais remanescentes da bienal do ano anterior. Foi feito o reaproveitamento e a catalogação de materiais que sobraram das mostras de outros pavilhões da edição passada. A exposição desta sobra salienta o excesso e desperdício decorrente dessas grandes exposições. Muitas das peças estão em perfeito estado e foram utilizadas apenas uma vez antes do seu descarte.

depósito de materiais remanescentes da bienal de arte 2022
worskhop – espaço de trabalho durante a ocupação

Austria

Pavilhão da Austria

O pavilhão da Austria está situado na ilha de Santa Elena, no limite nordeste do Giardini, e faz fronteira com o distrito de Castello, uma das últimas áreas de Veneza ainda ocupadas por moradores locais. Durante a maior parte do ano, o jardim fica fechado ao público por conta da montagem, desmontagem e da realização das bienais. Ou seja, apesar da proximidade geográfica, os moradores não podem desfrutar desse espaço. O objetivo da exposição ‘Partecipazione’, que tem curadoria e organização do coletivo AKT e do arquiteto Hermann Czech, foi abrir metade do prédio para a cidade, construindo uma passarela sobre o muro e convidando as pessoas a entrarem no parque para ver uma parte da bienal, sem precisar de ingresso. A construção da passarela foi iniciada durante o processo de negociação com os organizadores da bienal, que eventualmente não foi aprovada. O que vemos então é uma construção pela metade. Ao longo do processo de concepção, foram organizados vários encontros com a população. Os resultados desses encontros são apresentados na exposição e geram uma reflexão sobre a democratização e acessibilidade dos espaços públicos e privados. A quem servem esses megaeventos? Seriam eles mesmo benéficos para os moradores dessas cidades? Há um paradoxo entre uma bienal que se demonstra tão avançada em sua visão sobre o futuro e que ao mesmo tempo se fecha para a cidade.

Maquete da intervenção proposta
Alternativas do projeto submetidas à aprovação
Construção da passarela que não foi finalizada

Bélgica

Sob o título ‘In vivo’, a exposição tem curadoria de Bento e Vinciane Despret e reúne elementos de pesquisas sobre o micélio. Trata-se de um fungo que se autorregenera, sendo portanto um material abundante e de baixo custo. Dependendo do tratamento, as placas de micélio chegam a ter a mesma resistência do tijolo ou do concreto. Graças à baixa pegada de carbono de sua produção, esse material aponta para possíveis caminhos mais sustentáveis e menos poluentes para o futuro da construção civil.

Brasil

Vencedor do prêmio leão de ouro de melhor pavilhão, a exposição ‘Terra’ tem curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares. Baseada no ensinamento de Ailton Krenak de que ‘o futuro é ancestral’, a exposição olha para o passado para pensar o futuro. A primeira parte fala sobre Brasília, cidade reconhecida como patrimônio pela Unesco, cujo plano modernista não deixa de ser um gesto colonizador que deixou de levar em consideração a tradição dos povos indígenas e quilombolas que já lá habitavam. Em uma segunda parte, a apresentação de trabalhos como as descobertas arqueológicas do Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos coloca em evidência um passado que foi desconhecido por muito tempo. A terra também é presente como suporte e base para os elementos em exposição. Da terra viemos e é ela que carrega os vestígios históricos da ocupação.

Bases feitas em terra

Dinamarca

Em recente texto sobre o bairro de Nordhavn (clique aqui para lê-lo), eu comentei sobre o projeto em andamento em Copenhague para a criação da ilha Lynetteholm, concebida como uma solução para a demanda habitacional e como proteção contra o aumento do nível do mar. A exposição ‘Coastal Imaginaries’ também aborda esse tema, trazendo propostas para o planejamento futuro de regiões costeiras.

Espanha

A exposição Foodscapes aborda a produção da comida e como ela interfere no território, na paisagem e na arquitetura. Além da produção de um catálogo em forma de livro de receitas, o pavilhão reúne fotografias e cinco vídeos que retratam a cadeia alimentícia; passando pelo ambiente doméstico da cozinha e da sala de jantar; pelo encontro de culturas em refeitórios comunitários; abordando a invisibilidade do trabalho dentro da cozinha; o loteamento e a paisagem natural conformada às normas da agricultura; as vias de escoamento, como rodovias e portos; abatedouros; resíduos da produção e o solo. Os vídeos são de curta duração e possuem um ritmo acelerado, como se tivessem sido remixados por um dj.

Israel

O pavilhão israelense apresenta uma pesquisa sobre data centers (prédios de servidores), uma tipologia que tem sido muito reproduzida no país, inclusive para atender empresas estrangeiras, como a Google e a Amazon. São edifícios herméticos, completamente desvinculados do entorno. Faz sentido, em um país com clima tão quente quanto Israel, construir e manter esses prédios completamente fechados e refrigerados? Enquanto nos centros urbanos, há uma preocupação em projetar prédios mais abertos e acessíveis, os prédios das periferias estão cada vez mais isolados e impenetráveis. Qual o impacto dessa paisagem construída? Como metáfora deste distanciamento entre o prédio e o ambiente externo, o pavilhão de Israel foi totalmente vedado. As maquetes dos data centers, feitas em concreto, foram expostas do lado de fora.

Maquete de concreto

Holanda

A arquitetura abriga diferentes sistemas – econômico, político e social – e influencia no fluxo de pessoas e na realização de atividades. Para promover mudanças rumo a um futuro melhor, é necessário um entendimento do funcionamento desses sistemas numa escala macro. A exposição com curadoria de Jan Jongert e Superuse Studios traz a série de desenhos ‘The waterworks of money’, feitos pela arquiteta Carlijn Kingma. Os desenhos criam uma comparação entre o caminho do dinheiro e o da água.

 

A partir desta metáfora, o pavilhão propôs a instalação de um sistema de coleta da água de chuva no telhado, para que a água possa ser armazenada e melhor aproveitada para a irrigação do jardim. Essa obra envolveu tramites legais e burocráticos, o que gera uma discussão acerca da dificuldade da reabilitação de imóveis preservados, mesmo quando a mudança torna o imóvel mais sustentável. Dá margem também à reflexão sobre o impacto de eventos temporários nas cidades sedes e o legado que eles podem deixar após a sua realização.

Inglaterra

Os curadores Jayden Ali, Joseph Henry, Maneesha Kellay e Sumitra Upham convidaram seis artistas de origens distintas, que moram e trabalham no Reino Unido, para desenvolver trabalhos que abordem rituais e práticas cotidianas de diferentes culturas e contextos. A exposição coletiva busca questionar como os rituais moldam os nossos espaços.

Obra da artista Sandra Poulson, “Sãbao Azul e Água”

Suíça

O pavilhão da Suíça, projeto de Bruno Giacometti, fica ao lado do da Venezuela, assinado por Carlo Scarpa. São os únicos vizinhos no Giardini que dividem um mesmo muro. A exposição ‘Neighbours’ propôs tirar um pedaço do muro para integrar o espaço dos dois pavilhões. No interior, foi instalado um imenso tapete com o desenho das plantas baixas dos dois edifícios. Sem divisórias, os visitantes podem caminhar livremente e imaginar os espaços interligados. As grades, que fechavam a entrada do pavilhão da Suíça, também foram removidas, abrindo-o totalmente para o entorno.

Segmento do muro que foi removido
Tapete com o desenhos das plantas baixas dos dois pavilhões

Polônia

Com o avanço tecnológico da inteligência artificial, surgem dúvidas sobre o impacto dessa tecnologia sobre o projeto arquitetônico e o espaço construído. Neste tema, a exposição ‘Datament’, com curadoria Jacek Sosnowski, apresenta uma instalação construída a partir de dados coletados sobre 4 tipologias residenciais em países diferentes. A ausência de um filtro ou uma análise cuidadosa dos dados gera uma sobreposição, repetição e eventualmente um ruído no resultado. O objetivo é demonstrar como os dados por si só não trazem as respostas desejadas e que, para saber tirar proveito dessas informações, é preciso saber fazer as perguntas certas.

A Biennale Architettura segue aberta à visitação até 26 de novembro 2023.