Inspirado pelo construtivismo russo, movimento vanguarda do início do século XX, liderado por artistas como Kazimir Malevich e Alexandre Rodchenko, o construtivismo no Brasil ganhou força após a segunda guerra mundial e se desenvolveu predominantemente através do trabalho de dois grupos distintos do concretismo – o grupo ‘Ruptura’, de São Paulo, e o grupo ‘Frente’, do Rio de Janeiro. Apesar da natureza construtiva de sua obra, Sérgio Camargo não fez parte destes grupos. Tampouco pode a sua obra ser enquadrada no movimento ‘neoconcreto’, que conta com Amílcar de Castro, Franz Weissmann e Lygia Clark entre os seus principais representantes. Embora as suas esculturas também lidem com formas geométricas, Camargo desenvolveu uma linguagem única e particular. Com isso, ele dificilmente se encaixa em um estilo específico, adquirindo assim um papel de destaque na arte moderna brasileira.
Apesar desta independência, Camargo sofreu uma série de influências ao longo de sua trajetória. Além da clara influência de Henri Laurens em suas primeiras obras em bronze, o impacto da obra de Brancusi ao longo de sua evolução é evidente.
Vida e Obra de Sérgio Camargo (1930-1990)
Nascido no Rio de Janeiro em 1930, o escultor iniciou os seus estudos no mundo da arte aos 16 anos, na Academia Altamira, em Buenos Aires, onde teve aulas com Emilio Pettoruti e Lucio Fontana. Em 1948, viajou para a Europa. Na França, entrou em contato com a obra de Constantin Brancusi, cujo ateliê ele visitou em diversas ocasiões. Camargo voltou a Europa em 1961, desta vez para residir em Paris. Ele viveu na capital francesa durante 13 anos, momento em que produziu algumas de suas obras mais importantes e participou de diversas exposições internacionais. Após o seu regresso ao Rio de Janeiro em 1974, Sérgio montou um ateliê, onde continuou trabalhando até falecer em 1990.
“Relevos” (1963-1975)
Camargo estava na França quando deu início a sua série “Relevos”, em 1963. Embora Paris não fosse um ambiente propício ao construtivismo nessa época, Camargo seguiu por mais de 10 anos nessa sua pesquisa. Seguindo um processo que o próprio artista denominava como “geometria empírica”, os ‘relevos’ são obras que resultam de uma composição combinatória e opositiva entre cilindros brancos de madeira. Os cilindros variavam de tamanho e eram cortados em ângulos diferentes, diferenças que atribuíam um aspecto aleatório e inusitado a um processo regrado. O gesto de constante contradição também atribui um elemento de conflito e tensão à obra.
A sua arte não parte de uma imagem previamente idealizada – ela era uma consequência do seu método de trabalho. Em seu processo, Camargo opunha sistematicamente os cilindros, porém, após uma série de repetições, posicionava uma peça diferentemente das demais. Este rompimento com o rigor absoluto e com a rigidez das regras pré-estabelecidas pelo próprio artista é uma característica determinante da obra de Camargo. Ou seja, o método de Camargo permitia a estruturação e ao mesmo tempo dava margem ao improviso. O processo não é arbitrário mas também não é uma seriação mecânica. O método no caso do Sérgio não é uma prisão – é libertação.
“Trombas” ou o domínio no plano (1970)
A série “trombas” de Camargo é especialmente significativa porque ela marca a transição do plano para o volume. Enquanto em sua série “relevos”, as composições utilizavam o plano como base, em “trombas” há uma intenção de romper com o plano através do volume, conquistando assim uma espacialidade.
Diferente da obra de Amílcar, que explora o plano em seu valor escultórico pelo peso de sua espessura, Camargo busca o domínio do plano para enfim conquistar o volume. Após uma extensa investigação na série “relevos”, explorando diferentes escalas e combinações sobre o plano, Camargo sente então a necessidade de romper com o plano para enfim conquistar a tridimensionalidade. Este movimento de ruptura torna-se claro na série “Trombas”, onde os planos são atravessados de forma agressiva por cilindros mais robustos e violentos. Para eventualmente desprender-se do plano, era preciso conquistá-lo antes. Isso traz uma nova eloquência e dramaticidade ao conjunto. Há uma tensão latente com as trombas pedindo para sair do plano. As trombas invadem o espaço com uma energia e um senso de urgência.
Materialidade
Ao longo de sua carreira, Camargo experimentou com diferentes tipos de materiais. Passando pelo uso do bronze em suas primeiras obras nos anos 50, Camargo realiza as suas primeiras experimentações com estruturas em gesso, areia e tecido na década de 60 e explora vastamente a madeira nas suas séries “relevos” e “trombas”. Já meados dos anos 60, surgem as suas primeiras obras em mármore, que veio a se tornar o seu principal material a partir da década de 70.
A escolha de um material tão tradicional, característico das esculturas da antiguidade. Para Sérgio, a matéria era fundamental e o mármore de massa profunda é um material luminoso que assimila e irradia luz. O material possui uma luz própria e não precisa, portanto, de qualquer tratamento posterior superficial. Além disso, o acabamento natural polido do mármore dá um aspecto mais brilhante, nobre e até mesmo dinâmico ao conjunto. Sérgio considerava ainda que uma das grandes virtudes do mármore branco era a sua ausência. Com a sua luz natural e cor branca, o mármore Carrara revelava a forma em sua pureza. A escolha pelo mármore realça uma certa estabilidade e permanência dos trabalhos.
Nos anos 80, Camargo iniciou uma nova série de experimentações com outro tipo de mármore – o mármore pedra negro-belga. Nesta série, sua pesquisa se desdobrou sobre os limites físicos da matéria, fazendo cortes cada vez mais agudos e angulados, a fim de testar até que ponto a peça aguentava. Estes estudos resultaram em cilindros esguios e elegantes.
Chegou um determinado momento em que ele não conseguiu mais cortar as peças. Aumentando gradativamente as angulações, ele atingiu eventualmente ao limite da matéria. Com isso, ele pôs um fim a essa pesquisa e retornou ao estudo do plano. Buscando um novo começo, uma nova resposta.
Constantin Brancusi (1876-1957)
Nascido em Hobitza, um vilarejo na Romênia, o escultor Brancusi estudou em seu país natal nas escolas de arte de Craiova e de belas artes de Bucareste, até mudar-se para Paris, em 1904, onde constituiu a sua carreira e viveu pelo resto vida.
Brancusi foi um dos primeiros escultores abstratos e tornou-se particularmente conhecido pela simplificação de formas e símbolos. Ele era um grande admirador das obras de Rodin e realizou diversos estudos de simplificação de formas de seu mestre. Sua pesquisa girava em torno de figuras como peixes, pássaros e cabeças, simplificando estas figuras ao ponto de chegar quase à abstração.
Muitos críticos consideram que Brancusi foi o pioneiro e verdadeiro escultor cubista. Embora artistas do cubismo, como Miró e Picasso, produziram esculturas além de suas pinturas, estas eram mais uma projeção das formas abstratas e descontruídas da tela no espaço. Elas nasciam da pintura para então se desdobrarem no espaço. As esculturas de Brancusi, entretanto, eram volumétricas em sua essência. Brancusi demonstrava um domínio completo da espacialidade e da tridimensionalidade nas suas figuras.
A principal característica da obra de Brancusi é a figuração do volume. Suas obras não chegam a ser abstratas, mas são simbólicas, simplificações que representam a figura que ele busca representar. Bons exemplos deste trabalho de simbolismo são as esculturas “a bruxa” ou “a tartaruga voadora”, apresentadas nas imagens abaixo. Vale observar que os braços da bruxa se assemelham às “trombas” de Camargo.
Comparativo entre a obra de Brancusi e de Sérgio Camargo
Obra e Processo
A obra de Brancusi parte da desconstrução e da simplificação dos signos. Em um processo que tende à abstração, as suas esculturas mantêm sempre uma relação com o signo linguístico. Suas esculturas partem de uma ideia figurativa ou imaginária e, a partir de um processo de reinterpretação e reconstrução, geram um novo símbolo. A partir de um estudo aprofundado sobre o objeto em questão, captava-se a essência dos signos para então criar algo novo que nasce do já conhecido, do familiar. Um processo rigoroso norteado pela busca da forma e do significado.
A obra de Camargo, por outro lado, não parte de uma ideia anterior – ela era o resultado inesperado de um processo combinatório. Dentro de uma metodologia de contraposição sistemática de partes, rompida por momentos de aleatoriedade, o destino de cada cilindro é encontrar o outro. Nesse sentido, podemos dizer que foi dado um passo além de Brancusi, que não possuía qualquer arbitrariedade em seu processo. Este componente arbitrário da obra de Camargo, que rompe com o rigor do método, se aproxima do movimento ‘all-over’ americano, pela falta de hierarquia e o fim da composição.
Apesar de possuírem partidos e processos distintos, as formas dos artistas se assemelham:
Materialidade
Brancusi e Camargo possuíam atitudes semelhantes em relação à matéria. Para ambos os artistas, a matéria era um meio para revelar a forma, e não uma condicionante. Os dois eram avessos a tratamentos de superfície no material. Brancusi considerava que qualquer tratamento de superfície era suspeito. Ele dizia que a forma deve aparecer por conta própria, independente das características da matéria e do tratamento de superfície.
Embora Brancusi tenha trabalhado mais sobre a madeira e o bronze enquanto Camargo se debruçou sobre o mármore, a abordagem dos dois era semelhante. A forma não era uma consequência da matéria, uma pesquisa sobre as suas propriedades físicas, mas concepção e do método do próprio artista. O artista não se submetia à matéria – a matéria é que se submetia ao artista.
Para obter a forma ou resultado desejado, Camargo e Brancusi se dedicaram ao estudo das propriedades das matérias. Brancusi, inclusive, estudou técnicas de artesanato. Do mesmo modo que Camargo que teve que dominar o plano para eventualmente conquista-lo, Brancusi fez uma imersão no processo do artesanato para superá-lo e então desenvolver as suas formas tão particulares.
Tributo à tradição
Enquanto nas séries “relevos” e “trombas”, a base, que no caso é o plano, é fundamental, as esculturas em mármore de Camargo geralmente eram concebidas para não terem uma base. Este gesto de emancipação, característico do movimento moderno, atribuía uma maior liberdade à peça. A obra não obedecia uma base, não era submetida a ou limitada pela mesma.
Já para Brancusi, a base garantia a autonomia do objeto e a integridade da escultura. Ela era a garantia de que a obra seria sempre apreciada da sua melhor forma. Ou seja, num mesmo gesto de busca de autonomia da obra, verificamos soluções opostas – Camargo se abstém da base enquanto Brancusi a abraça.
Além disso, Brancusi se aproveitava das bases para fazer um tributo à tradição, reproduzindo nelas detalhes decorativos de outras épocas. Este respeito pela tradição também se faz presente na obra de Camargo, evidenciado pela escolha e o uso de um material tão nobre e tradicional como o mármore.
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Camargo e Brancusi. Ambos escultores do movimento moderno que escolheram Paris para residir em momentos diferentes. Ambos sofreram influência do ambiente criativo que lá se instalava, mas conseguiram criar uma linguagem própria e única neste meio.
A aproximação formal entre as obras de Brancusi e Camargo é particularmente surpreendente se levarmos em conta as disparidades entre o método e o partido de ambos. A escolha e o uso dos materiais também diferem entre os dois, embora sigam uma mesma abordagem nas pesquisas sobre as propriedades da matéria e um mantenham respeito pela tradição.