Post especial sobre a Feira Literária Internacional de Paraty, a FLIP, realizada anualmente na cidade durante uma semana nos meses de Junho ou Julho. No texto, alguns dos melhores momentos das mesas que tive a oportunidade de assistir.
Tenda dos Autores da FLIP 2014
Mesa 2 | ‘Os Possessos’, com Elif Batuman e Vladimir Sórokin, com mediação de Bruno Gomide
A primeira mesa trouxe uma discussão sobre a literatura russa entre Vladimir Sórokin, um dos maiores autores russos da atualidade, e Elif Batuman, norte americana de origem Turca que estudou literatura russa em Harvard e Stanford e hoje dá aula na mesma. Entre anedotas e opiniões próprias, ambos falaram sobre a obra de Dostoiévski, sobre a produção literária no período soviético e sobre o caráter cômico e trágico da literatura russa – repleta de humor e tristeza ao mesmo tempo. Sórokin diz que a vida na Rússia é difícil e as duas coisas que os ajudam a superar são: o bom humor e a vodka.
Sobre o ato da escrita, ambos refletem sobre a relação do autor com o contexto em que vive. Sórokin considera que o autor que não vive o seu contexto, aquele que se fecha em seu próprio mundo e só escreve, torna-se um monumento a si mesmo. Considera válida a colocação de um filósofo que dizia que um escritor morre a partir do momento em que desenvolve um estilo próprio. Me pergunto até que ponto essa colocação não é válida para as outras artes, até mesmo para a arquitetura.
Para concluir, ao serem feitas perguntas relacionadas à política, sobretudo em relação à atual crise com a Ucrânia, Sórokin encerra elegantemente a conversa com a seguinte colocação: “Putin vem e vai. O romance fica”.
Mesa 3 | ‘Fabulação e Mistério’ com Eleanor Cotton e Joel Dicker, com mediação de José Luiz Passos
Eleanor Cotton e Joel Dicker são autores extremamente jovens e que em pouco tempo já obtiveram reconhecimento internacional. Eleanor foi a mais jovem autora a ganhar o ‘Man Booker Prize’ com o seu livro “Os Luminares” enquanto Joel Dicker ganhou 2 grandes prêmios na França pelo seu suspense “A verdade sobre o caso Harry Quebert”. Entre os temas abordados na conversa, os autores falaram sobre a importância do leitor para o livro – o autor faz 50% do trabalho através da escrita mas depende fundamentalmente do olhar do leitor. Por isso, Joel Dicker diz que gosta de trabalhar com clichês pois acredita que isso estimula o 50% de retorno / participação de seus leitores.
Em uma reflexão interessante sobre passados e realidade, os autores falaram ainda sobre a temporalidade dos romances e a dificuldade de escrever no passado. Enquanto o livro de Cotton se situa na idade média na Nova Zelândia, o livro de Joel Dicker se passa nos anos 80. De certa forma, a liberdade de Joel torna-se ainda mais restrita devido à proximidade da data. Fatos mais próximos são mais memoráveis e qualquer equívoco ou imprecisão sobressai. Um passado distante, no entanto, deixa muitas manchas de desconhecido, o que dá ao autor uma maior margem para a imaginação.
Mesa 4 | ‘Paraty, a Veneza do Atlântico Sul’. Uma conversa entre Paulo Mendes da Rocha e Francesco Dal Co, com mediação de Guilherme Wisnik
Esta era a mesa que eu mais aguardava. Tratava-se de um encontro entre um dos maiores arquitetos brasileiros, o ganhador do premio Pritzker em 2006 – Paulo Mendes da Rocha – e o crítico Italiano e editor da revista Casabella – Francesco Dal Co.
Paulo iniciou a conversa falando sobre o processo de formação de cidade; como essas são consequência do desejo humano – um desejo sempre insatisfeito. Este desejo de conquista exige uma intervenção contínua sobre a natureza. Para que esta se torne habitável, ela deve ser adaptada às necessidades humanas. Neste contexto de domínio e imposição sobre a natureza, Paraty e Veneza surgem como duas cidades improváveis.
Francesco Dal Co, que mora em Veneza, inicia a sua participação na conversa com uma frase do autor italiano Petrarca :“Venezia è l’impossibile nato sulla impossibilitá” (Tradução: Veneza é o impossível que nasce da impossibilidade). Situadas próximas da água, ambas as cidades são invadidas pela mesma. As ruas de Paraty são tomadas pelas águas quando a maré sobe e Veneza é largamente conhecida pelos seus canais labirínticos. Ambas as cidades nasceram e se fortaleceram por sua forte relação com a navegação. Veneza era um ponto importante de trocas comerciais entre o ocidente e o oriente até o final do século 15. Já Paraty oferecia uma baía de águas calmas onde os navios podiam atracar para levar o ouro obtido em Minas Gerais, durante o ciclo do ouro no Brasil no século 18.
Tanto Veneza quanto Paraty perderam nos últimos séculos seus papeis originais de ponto de escambo e pólo da navegação embora permaneçam como joias do patrimônio mundial. No caso de Veneza, sua reputação é tão gigantesca que a cidade recebe anualmente 23 milhões de habitantes. Dal Co questiona esse movimento de turismo em massa, expondo um conflito da cidade entre a sua preservação e os efeitos nocivos desse movimento efêmero e constante, que descaracteriza a forma a cidade.
Nessa conversa sobre conflitos, Mendes da Rocha e Dal Co afirmam que a cidade, de modo geral, é o âmbito dos conflitos. Todas as cidades são feitas de conflitos e é preciso aprender a conviver com eles. Para Dal Co, a própria arquitetura é resultante de conflitos – o Museu da Escultura Brasileira em São Paulo, um projeto de Paulo Mendes, por exemplo, traz um belíssimo conflito entre a estrutura e a força da gravidade. Ambas as cidades espelham esse conflito em sua relação com a natureza. Apesar de se assentarem sobre solos moles e apesar da invasão da água – em Veneza, por exemplo, estão sendo executados grandes projetos de contenção para a preservação da cidade – as duas cidades permanecem. De acordo com Paulo Mendes, a natureza é uma beleza a ser contemplada através do emolduramento da janela, e segue como um desafio a ser confrontado constantemente na formação de uma cidade.