Supercrítico | Eisenman e Koolhaas
20/04/2020

Durante a quarentena, estou aproveitando para ler livros que estão na minha estante há anos. Nos últimos tempos, adquiri o hábito de ler livros digitais e acabei dando prioridade a indicações mais recentes nesse formato, deixando vários títulos na prateleira em espera. Nesse retorno à minha estante, resolvi ler o “Supercrítico – Eisenmann e Koolhaas”, editado pela extinta Cosac Naify. Destaco a seguir alguns dos pontos discutidos que mais chamaram a minha atenção. 

O livro é dividido em quatro partes. A primeira delas é a transcrição de um debate entre os arquitetos Peter Eisenman e Rem Koolhaas em um evento na Architectural Association (AA) de Londres, em 2006.

Peter Eisenman é o arquiteto fundador do Eisenman Architects, escritório em Nova Iorque. Autor de projetos como o Memorial aos Judeus Mortos da Europa, em Berlim, e a Cidade da Cultura da Galícia, em Santiago de Compostela, Eisenman desenvolveu uma carreira acadêmica paralelamente à sua prática profissional. Deu aulas em Cambridge, Princeton, Harvard, Cooper Union e Yale. Eisenman já foi assunto aqui no blog em 2011, quando tive a oportunidade de assistir a uma palestra sua em Paris. Na época, ele falou do espírito do tempo na arquitetura e como as diferentes camadas temporais influenciam cada sítio. Ele também mencionou que, em um dos seus cursos, ele não permitia que os alunos entregassem desenhos. O que era pedido era apenas uma lista de leitura e a prova no final do semestre seria baseada nela. Entre os livros, constava Guerra e Paz, do Tolstoi – uma tentativa sua de fazer os alunos olharem para assuntos além da arquitetura. 

Rem Koolhaas, arquiteto holandês fundador do OMA (Office of Metropolitan Architecture) e vencedor do Prêmio Pritzker em 2000, graduou-se na Architectural Association (AA), onde depois se tornou professor. Ele também deu aulas nas universidades Rice, Cornell e Harvard, nos Estados Unidos. Antes de ingressar na faculdade de arquitetura, trabalhou um tempo como jornalista, o que lhe deu um olhar sempre curioso e investigativo que se faz presente em suas publicações como Mutations, Project Japan e Elements of Architecture. Esta última foi apresentada na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2014, da qual ele foi curador. Alguns dos seus principais textos mais conhecidos foram traduzidos para o português e estão agrupados no livro “Três textos sobre a cidade“. O arquiteto se interessa por temas diversos que por vezes apenas tangenciam ou se afastam completamente do campo da arquitetura. Um dos seus projetos, a Casa da Música do Porto, já foi assunto aqui no blog. 

Durante o debate, Koolhaas explica que a arquitetura é uma disciplina milenar que entretanto parece estar cada vez mais perdendo a sua relevância. Com essa colocação, ele questiona o papel do arquiteto na contemporaneidade e o impacto da obra arquitetônica. Como Koolhaas desenvolveu a sua carreira durante a globalização, ele viu o local e o tradicional perdendo a sua importância na prática, algo que Eisenman também identifica. 

Atualmente, muitos escritórios de arquitetura tem sede em diferentes cidades e continentes. O OMA está em Rotterdam, Nova Iorque, Hong Kong, Doha, Dubai, Beijing e Sydney. A sede do Eisenman Architects é em Nova Iorque mas o arquiteto fez projetos em diversas cidades dos EUA, assim como na Europa e na Ásia. Apesar da facilidade de trânsito e a possibilidade de trabalhar internacionalmente, Eisenman destaca os desafios de lidar com políticos, cultura e normas locais, e que um conhecimento aprofundado sobre essas questões vai além da sua competência como arquiteto. 

CCTV Beijing, OMA. Fonte Foto: Dezeen

Entre os projetos discutidos no debate, eles falaram sobre o CCTV em Beijing, um dos principais projetos do OMA construído na Ásia nos últimos anos. A sede do canal de televisão trouxe muitos desafios de projeto como repensar a tipologia dos arranha-céus, o papel do canal de televisão na sociedade chinesa, além da história, cultura e a tradição do país. Sua forma sedutora da solução projetual seria possível em outro país, ou apenas nesse contexto? Um escritório internacional conseguiria captar a essência chinesa e influenciar a arquitetura local das próximas gerações, ou seria sempre visto como um projeto estrangeiro? 

Em seu livro S,M,L,XL, lançado em 1995, Koolhaas inclui um texto sobre a globalização onde ele fala sobre essa prática de projetar internacionalmente. Ele considera que a colaboração internacional entre uma cultura local e um arquiteto estrangeiro resulta em uma alogamia (cross-fertilization), um híbrido que não seria possível em qualquer outro contexto. O Prédio Seagram em Nova Iorque, por exemplo, é um resultado do encontro do arquiteto alemão Mies Van der Rohe com os Estados Unidos, em uma parceria com Philip Johnson. Koolhaas defende que esse projeto não seria possível de se construir na Europa, nem apenas por um arquiteto americano. 

Seagram Building, Mies Van der Rohe em parceria com Philip Johnson. Fonte Foto: Archdaily.

O segundo capítulo do livro traz a transcrição de um outro debate, dessa vez entre os críticos Jeffrey Kipnis e Robert Somol, que aconteceu no mesmo lugar porém dois dias depois do primeiro encontro. Eles distinguem a pesquisa de Eisenman como mais centrada em questões de arquitetura e desenho em si, (malha estrutural, desenho de planta, geometria), enquanto a pesquisa de Koolhaas busca dados além do campo da arquitetura – como a arquitetura influencia o mundo e vice versa. Cada pesquisa traz a sua contribuição porém cada uma tem o seu limite. Enquanto a pesquisa de Eisenman sobre a morfologia é importante, ela perde a sua relevância fora do debate da disciplina. Já a pesquisa de Koolhaas esbarra nos limites do conhecimento do arquiteto. Ao estudar questões do meio urbano, por exemplo, nos deparamos com outras áreas do conhecimento que vão além da formação de arquitetura ou urbanismo, como política, economia e legislação. 

A terceira parte do livro traz duas palestras dos arquitetos nos anos 70. Primeiro a de Eisenman, que aconteceu em 1975 na AA com Alvin Boyarsky, onde ele fala sobre o Institute for Architecture and Urban Studies (IAUS), em Nova Iorque, criado e dirigido pelo arquiteto. Ele explica que o instituto nasceu de suas próprias inquietações relativas à disciplina. Quando fez phd em Cambridge, Eisenman encontrou na Inglaterra uma outra relação da sociedade com a arquitetura. A arquitetura era percebida como parte fundamental da sociedade, como um agente transformador e veículo crítico, pertencendo ao debate comum, enquanto nos EUA a arquitetura tinha um papel muito mais utilitário. Segundo ele, nos EUA a arquitetura é vista como um meio de garantir uma boa qualidade de vida, mas sem um impacto na discussão cívica. O objetivo do  instituto portanto era tentar criar uma ponte entre a academia e a prática, um problema recorrente no mundo da arquitetura. Ele buscou alunos de pós graduação de universidades como Cornell e envolveu-os em programas de pesquisa de habitação e urbanismo.

Em seguida, uma palestra de Peter Cook com Rem Koolhaas, no Art net em Londres, em 1976. Koolhaas elaborou sobre a rivalidade entre Dalí e Le Corbusier e suas diferentes visões sobre a realidade, a racionalidade e a crítica, um assunto que ele abordaria com mais profundidade no seu livro Nova Iorque Delirante, publicado pela primeira vez dois anos depois pela editora The Monacelli Press. 

No quarto e último segmento do livro, o editor Brian Steele traz 100 pontos sobre os arquitetos. Ambos viveram a experiência de intercâmbio, cruzando o oceano em busca de novos conhecimentos. Koolhaas saiu dos Países Baixos, foi para Nova Iorque e depois para Londres enquanto Eisenman saiu dos EUA para a Inglaterra. Ambos também iniciaram suas carreiras na arquitetura através da escrita, antes mesmo do projeto (Koolhaas com “Nova Iorque Delirante” e Eisenman com sua tese de phd intitulada “The formal basis for modern architecture”). Em ambos os casos, essas publicações foram seminais para a constituição e o percurso dos seus escritórios. Foi uma maneira de colocar no papel o caminho que gostariam de seguir. Tanto que a prática da escrita para ambos parece ser mais direcionada a eles mesmos do que a um público leitor. 

Para finalizar, uma colocação sobre a primorosa edição da Cosac Naify. A editora inovou em sua diagramação ao criar um sistema de afastamentos das margens. Cada coluna representa a fala de um interlocutor, então não há necessidade de ficar repetindo o nome a cada parágrafo. A leitura é leve apesar do conteúdo técnico e a diagramação contribui para a construção do raciocínio acerca dos temas discutidos.