Aprendendo com Las Vegas | Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour
09/06/2020

Seguindo com a série de textos sobre livros de arquitetura, o assunto de hoje é o “Aprendendo com Las Vegas”, de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, publicado originalmente em 1972. O livro é resultado de um ateliê do programa de pós graduação de Yale, ministrado por Venturi e Scott Brown. Eu li a versão traduzida para o português por Pedro Maia Soares, editado pela Cosac Naify, e publicado em 2003.

Esse estudo foi desenvolvido em um momento de crise do movimento moderno e contribuiu para o surgimento do pós-modernismo na arquitetura. Purista e revolucionário, o modernismo propunha deixar o passado para trás e recomeçar do zero. Nos anos 1920, Le Corbusier chegou a defender o arrasamento de cidades inteiras com o seu projeto utópico “Ville Radieuse”. Uma das máximas do movimento moderno era “forma segue função”, onde a forma seria uma consequência do programa. Apesar disso, muitos arquitetos, como o próprio Corbusier, buscavam inspirações em estruturas como navios e estações ferroviárias. É válido afirmar, portanto, que as formas modernas não eram puramente resultantes de um processo lógico. É importante reconhecer as influências sobre a forma para uma compreensão do seu simbolismo. 

Com estas considerações em mente, a pesquisa de Venturi, Scott Brown e Izenour objetivou um entendimento da paisagem do espalhamento urbano, fenômeno de expansão da cidade e seus subúrbios para a área rural, que já estava ocorrendo nos Estados Unidos nos anos 1970 . O objeto escolhido para a análise foi a cidade de Las Vegas.

Parte 1 – Uma significação para os estacionamentos da A e P, ou aprendendo com Las Vegas

O livro é dividido em duas partes. A primeira se dedica à análise de alguns elementos icônicos de Las Vegas, como os estacionamentos, os espaços internos e a “strip”. O termo “strip” se refere a um trecho da avenida Las Vegas Boulevard, onde estão concentrados os principais hotéis e cassinos da cidade. 

Denise Scott Brown em frente à “Strip” de Las Vegas. Imagem: the Archives of Robert Venturi and Denise Scott Brown

O espaço da strip seguia uma lógica inovadora para a época – sua organização era pensada a partir da perspectiva do automóvel. No livro “the view from the road (1964)” Appleyard, Lynch e Meyer analisaram a experiência de dirigir e, entre as suas observações, constataram que há uma relação direta entre o campo visual dos motoristas e passageiros e a velocidade do veículo. O aumento da velocidade estreita o ângulo focal. Elementos na paisagem como postes, árvores, e principalmente aqueles que passam por cima da cabeça, aumentam muito a percepção de velocidade. 

Outdoor visto da perspectiva do automóvel. Imagem: https://archiobjects.org/learning-from-las-vegas/

Na strip, há 3 maneiras de comunicar – pelos letreiros, pelas fachadas e pela implantação dos edifícios. Dada a velocidade do observador, torna-se essencial a clareza da comunicação. O motorista não tem tempo de analisar informações sutis. Neste sentido, o letreiro é mais eficiente do que a arquitetura. Há casos em que a própria construção transmite a mensagem, como é o caso do “Big Duck”, o ‘Pato’ de Long Island.

The Big Duck, o ‘Pato’ em Long Island. Imagem: Pinterest

Nos casos em que o letreiro é um elemento independente, ele é posicionado mais próximo da estrada para facilitar a sua leitura. Ou seja, ele é visto antes do prédio. Os letreiros geralmente possuem diferentes elementos para serem lidos à medida que o veículo se aproxima e também contam com efeitos distintos para o dia (podem ser giratórios e coloridos) e para a noite (show de luzes). Em Las Vegas, as proporções são outras – os letreiros são três vezes mais altos do que a sinalização em outras cidades para poderem competir com os cassinos espetaculares.

A fachada lateral é quase tão importante quanto, senão mais, do que a fachada principal. Ela é visualizada por mais tempo por quem se aproxima de carro. Pensando no ponto de vista do automóvel, muitas fachadas são em diagonal para facilitar a visualização. Já os fundos das construções são todos iguais, sem distinção. 

Muitos cassinos e hotéis utilizam elementos decorativos históricos em suas arquiteturas, como é o caso do Caesar’s Palace. A colunata e simetria remetem ao barroco de Berrini e confere monumentalidade ao complexo. Trata-se de uma arquitetura da alusão e da fantasia.

Piscina do Caesar’s Palace. Arquitetura com referências históricas e o pátio interno é como um oásis no deserto. Foto: Destination360.com

Na strip, os estacionamentos adquirem uma função cerimonial. Assim como os letreiros, eles são posicionados próximos da via, em frente ao edifício. Além de ser uma conveniência, é um símbolo. Os autores chegam a comparar o vasto estacionamento com a praça de chegada do Palácio de Versailles, na França. Esses espaços amplos, que conferem distância e monumentalidade à construção, são aqui cedidos ao carro em uma espécie de “ode ao automóvel”. 

Os espaço interno dos cassinos seguem a mesma lógica. A entrada da sala de jogos está em um ponto hierárquico do projeto, imediatamente em frente à entrada. São ambientes escuros, com pé direito baixo por conta do ar condicionado, possuem iluminação artificial, revestimentos acústicos e opacos. Essas características conferem ao espaço privacidade e foco aos jogadores. A ausência de janelas também proporciona uma quebra com o mundo exterior. Perde-se a noção do tempo enquanto joga. Já os pátios internos dos hotéis são como oásis no meio do deserto com água, fontes e palmeiras.

Cassinos com ambientes escuros. Imagem: Thinkstock/Thinkstock

Em Las Vegas, há o que os autores chamam de “fenômenos gêmeos”, a redução do contraste entre o dia e noite. O dia é negado dentro do cassino e a noite é negada pela iluminação noturna da cidade. De dia, as silhuetas vibrantes perdem o contraste e somem na vastidão da paisagem. Neste contexto de espaços amplos e ausência de encerramento, cabe aos letreiros e à sinalização informar e orientar. Trata-se de uma paisagem construída a partir de símbolos, e não de formas. 

Parte 2 – Arquitetura feia e banal, ou o galpão decorado.

A segunda parte do livro traz uma reflexão sobre o simbolismo na arquitetura. A partir das pesquisas de Las Vegas, os autores criaram duas categorias para a análise. A primeira foi chamada de ‘pato’ (duck), em referência ao patinho de Long Island, quando a forma do edifício traduz literalmente o conteúdo desejado. O segundo é o ‘galpão decorado’, onde o ornamento é aplicado sobre a fachada de forma independente, uma decoração contrastante e até mesmo incoerente. No primeiro, o objeto É o símbolo enquanto, no segundo, ao objeto se aplicam símbolos.

O “Galpão decorado” e o “Pato”

Numa comparação entre dois complexos residenciais da década de 60, a “Guild house” e a “Crawford Manor”, os autores analisam que a arquitetura moderna, ao deixar de considerar a história da arquitetura e jogar fora o ecletismo, abandonou o simbolismo em nome do expressionismo dos elementos construtivos. Pilares, vigas assumem o papel do ornamento e devem se expressar por conta própria. Ao rejeitar o ornamento como frívolo, os edifícios modernos não transmitem uma mensagem clara. O edifício moderno se torna um grande ornamento – um ‘pato’.

Guild House. Elementos facilmente reconhecíveis, clareza na comunicação. Demarcação da entrada. Imagem: 99 percent invisible
Crawford Manor. Cabe aos elementos arquitetônicos a composição da fachada. Foto: https://skylightsatnight.wordpress.com/

Eles também estabelecem um paralelo entre o que chamam de arquiteturas ‘Feia e Banal’ (FB) e ‘Heróico e Original’ (HO). O que eles chamam de arquitetura FB seria aquela típica dos subúrbios americanos e do espalhamento urbano. São casas com referências a estilos históricos, com um simbolismo explícito, que representam um estilo de vida popular e o uso do automóvel. Essas construções se afastam do purismo do movimento moderno e são criticadas por especialistas e intelectuais do ramo, que por sua vez preferem a arquitetura HO. Venturi, Scott Brown e Izenour defendem que o arquiteto deveria sair da bolha da alta cultura, apreciar a cultura popular e trabalhar com o real. O simbolismo da arquitetura HO deriva de sentidos abstratos enquanto a FB transmite sentidos familiares. 

Os autores citam o crítico Alan Colquhoun, que dizia que não estamos livres das formas do passado e que o movimento moderno subestimou a importância e influência de formas históricas e conhecidas, criando uma crença mística no intuitivo. Segundo eles, os modernistas substituíram o simbolismo do vernacular do ecletismo histórico pelo vernacular industrial. Quando os arquitetos modernos deixaram de projetar ornamentos, eles passaram a projetar prédios que eram ornamentos. Os edifícios modernos são, portanto, patos. 

Conclusão

“Aprendendo com Las Vegas” foi escrito há quase 50 anos. Muito mudou desde então. A cidade e a strip não são mais as mesmas. Muitos dos elementos estudados originalmente não estão mais lá ou foram modificados. Apesar disso, a leitura do livro ajuda a entender muitas das insatisfações com o movimento moderno e como isso levou ao surgimento do movimento pós-moderno na arquitetura.

O livro gerou muita polêmica na época de sua publicação e divide opiniões até hoje. Ainda assim, é inegável o seu impacto na história da arquitetura e a sua leitura nos ajuda a entender muitos fenômenos que influenciam as cidades até os dias atuais.