Arquitetura e Crítica | Josep Maria Montaner
27/04/2020

Seguindo na série de textos sobre livros de arquitetura, o assunto de hoje é o Arquitetura e Crítica, de Josep Maria Montaner, publicado pela editora Gustavo Gili e com tradução de Alicia Duarte Penna. Montaner é arquiteto, doutor, professor da Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona e autor de diversas publicações como Arquitetura e Crítica na América Latina” e “Depois do Movimento Moderno: Arquitetura da metade do século XX.

Capa do Livro Arquitetura e Crítica

O livro traz um panorama de críticos e arquitetos cujas produções teóricas contribuíram historicamente para a crítica da arquitetura. Montaner começa elaborando sobre o papel da crítica. A crítica constrói a ponte entre a teoria e a prática. Cabe à crítica interpretar e contextualizar, entender origens e significados. O crítico, portanto, deve ter um profundo conhecimento da história, uma compreensão do presente e uma visão sobre tendências para o futuro.

O trabalho do crítico varia em função do seu objeto e tema. O crítico literário por exemplo, consegue ter todo o seu objeto de estudo num mesmo ambiente se ele conseguir criar para si uma rica biblioteca. Já a crítica da arte e da arquitetura exige uma atividade nômade, com viagens até o objeto. O crítico de arquitetura não pode limitar a sua análise apenas a fotografias e desenhos. É preciso ir ao local para observar a sua fachada, a sua escala, a relação na paisagem e comprovar o seu funcionamento.

Destaquei alguns dos principais pensadores selecionados por Montaner com um resumo de suas ideias e contribuições. Algumas explicações foram complementadas por textos compilados no livro “Nova Agenda para a Arquitetura”, de Kate Nesbitt, editado pela Cosac Naify.

Uma nova agenda para a arquitetura, Kate Nesbitt

Começamos com Gottfried Semper(1803-1879) arquiteto alemão que seguia a linha do cientificismo – uma concepção filosófica que afirma a superioridade da ciência sobre as outras formas de conhecimento humano – e do positivismo, sistema criado por Auguste Comte que percebe a ciência como o único conhecimento verdadeiro. Em sua obra, Semper buscou encontrar leis fixas e imutáveis para as artes, levando em consideração condicionantes como materiais, clima, política, etc. 

John Ruskin (1819-1900) e William Morris (1834-1896), por outro lado, seguiam uma linha de valorização do trabalho artesanal e da arquitetura medieval, propondo uma resistência à cultura industrial e maquinista. Alois Riegl (1858-1905), historiador do Museu de Artes de Viena, também se opõe a Semper. Expoente da teoria formalista – concepção que coloca a forma sobre o conteúdo – Riegl introduz ao campo da arquitetura a centralidade da ideia de espaço. Heinrich Wöfflin (1864-1945), historiador de arte suíço, centrou seus estudos no período do renascimento e estabeleceu categorias formais para análise da arquitetura. Os pensamentos de Riegl e Wöfflin levaram à certeza do relativismo histórico, isto é, que não há períodos superiores a outros e que a obra de arte deve ser julgada seguindo apenas as regras do seu próprio período.

Benedetto Croce (1866-1952) foi um historiador italiano que transmitiu as teorias formalistas centro-europeias para mediterrâneo. Ele desenvolveu uma análise crítica do formalismo adaptada ao contexto italiano. Sua estética inaugura um caminho de síntese que depois será retomado por Giulio Carlo Argan e Ernesto Nathan Rogers. 

O movimento moderno

O conceito zeitgeist (espírito do tempo, em alemão), desenvolvido amplamente por Hegel, foi  empregado por modernistas como uma justificativa anti-historicista. Ao negar os precedentes históricos, eles defendem a construção do novo absoluto. Adolf Loos (1870-1933), um dos arquitetos pioneiros do movimento moderno, foi influenciado pelos textos de Semper e advogou pela simplicidade e pela abolição dos ornamentos na arquitetura. O arquiteto já foi assunto aqui no blog. 

Walter Gropius (1883-1969) fundador da Bauhaus em 1919, em Weimar, tinha a intenção de seguir os passos do ‘arts and crafts’, defendido por Ruskin e Morris, e criar uma parceria com a indústria alemã. Seu objetivo final era promover a união de todas as artes e trazê-la para o cotidiano. A Bauhaus acabou por se tornar campo de prova de diferentes grupos de vanguardas artísticas.

Le Corbusier (1887-1965) é bem conhecido por seus projetos mas também contribuiu muito para a produção teórica e crítica. Em “Por uma Arquitetura”(1923), o arquiteto busca inspiração em máquinas e estruturas como aviões, automóveis e transatlânticos. No final do livro, ele apresenta dois projetos seus – a casa dominó e Citrohan – que legitimam a arquitetura para a formulação de protótipos possíveis de serem replicados em larga escala. 

Casa Domino, Le Corbusier

Seguindo a ideia do Zeitgeist e o pensamento anti-historicista, Le Corbusier desenvolve em 1931 o plano urbano da Ville Radieuse, um projeto utópico de tabula rasa, de construção em terreno planos, muitos deles resultantes das destruições da guerra. Esses conceitos são mais desenvolvidos no seu livro “Urbanismo” (1925).

O americano Frank Lloyd Wright (1869-1959) seguiu uma corrente totalmente autônoma e anti acadêmica. Em consonância com Louis Sullivan, ele defendia o funcionalismo orgânico – a criação de uma nova arquitetura estadunidense, fundada na liberdade individual, na democracia e em uma relação intrínseca com a natureza. 

Casa “Falling Water”, de Frank Lloyd Wright. Fonte Foto: https://www.britannica.com/place/Fallingwater

Siegfried Giedion (1888-1968) foi um historiador que criou a ideia unificadora do espaço-tempo, configurado pelo movimento moderno e em sintonia com as ideias do Riegl. Ele também foi influenciado pelo positivismo de Semper. Seus escritos analisaram a influência direta de novos materiais e técnicas e considerava a estrutura de um prédio como uma manifestação do subconsciente do arquiteto.

Bruno Zevi (1918-2000) arquiteto italiano, historiador e autor do livro “Saber ver a Arquitetura”. Seguindo a tradição de Benedetto Croce, Zevi reinterpretou o conceito de espacialidade interna de Riegl. Zevi considerava que os templos gregos estariam fora do âmbito da arquitetura por não possuírem espaço interno. 

Peter Reyner Banham (1922-1988) foi um crítico e escritor inglês, formado originalmente em engenharia. Banham foi fortemente influenciado por Giedion e considerava que o academicismo teve uma influência negativa na arquitetura ao atribuir importância às formas belas sobre as formas mecânicas. Ele apoiou a evolução da arquitetura britânica nas obras de Alison e Peter Smithson e James Stirling, posicionou-se a favor da arquitetura nômade, como aquela idealizada pelo grupo Archigram, e suas ideias serviram como suporte teórico ao movimento high tech, praticado por escritórios como Norman Foster, Richard Rogers e Renzo Piano.

Projeto utópico “walking city”, do coletivo archigram

Leonardo Benevolo(1923-2017) foi arquiteto e urbanista formado em Roma. Seus textos partem da ideia de que as infra-estruturas políticas e econômicas são prévias às superestruturas artísticas e culturais. 

Movimento Pós-moderno. A recuperação do sentido da história 

Edoardo Persico(1900-1936) foi diretor da revista italiana Casabella e defendia o gênio do artista e o valor da arquitetura enquanto obra de arte. Giulio Carlo Argan (1909-1992) era historiador de arte e influenciou o trabalho de arquitetos como Aldo Rossi e Vittorio Gregotti. Sua visão une duas metodologias – o estudo da capacidade criativa do autor e das características das obras com o seu contexto com a sociedade.

Dois conceitos bases regiam a situação da arquitetura após a II guerra mundial – a continuidade do movimento moderno e a sua necessária crise e revisão. Ernesto Nathan Rogers (1909-1969) que também foi diretor da Casabella-continuitá (1953-64) defendia a adaptação dos seus conceitos ao novo contexto, a recuperação da história e da tradição sem cair em formalismos. Entre outras contribuições, E.N.Rogers reintroduziu a importância de monumento. 

Torre Velasca, projeto do BBPR, do qual Ernesto Nathan Rogers era sócio.

Fenomenologia – Arquitetura como espaço existencial

Christian Norberg-Schulz (1926-2000) foi um teórico norueguês que introduziu ao campo da arquitetura o conceito de fenomenologia, uma investigação sistemática da consciência e dos objetos entre si, fundado por Edmund Husserl (1859-1938). Schulz centrou a sua análise sobre dois elementos – a massa e o espaço. O genius loci (antiga noção romana que se refere à essência do lugar) e o conceito de articulação, de relacionar os elementos da arquitetura em um sistema coerente. 

A proposta de Schulz era de um retorno às coisas em oposição a abstrações e construções mentais. Ele atribui maior importância às necessidades humanas de identificação, orientação e pertencimento, e interpreta o conceito de habitar como ‘estar em paz em um lugar’. Para ele, a fronteira não é onde o espaço termina, mas onde ele começa. Ou seja, o ato de cercar e demarcar o lugar representa a verdadeira origem da arquitetura. Schulz considera também que critérios científicos de análise não dão conta da complexidade das coisas do ambiente construído. O lugar é o resultado de todos os componentes que atribuem-lhe uma identidade. Os conceitos de Schulz exerceram uma forte influência nas obras de arquitetos como Vittorio Gregotti, Tadao Ando e Steven Holl. 

Tradições Revisionistas ao movimento moderno

Lewis Mumford (1895-1990) promoveu a interpretação da cidade a partir do ponto de vista dos modos de produção, tecnologia, estrutura social e da cultura. 

Jane Jacobs(1916-2006) foi jornalista americana que escreveu o livro “morte e vida de grandes cidades”(1961), onde defendia a mistura de funções e a vida pública nas ruas, fundamentais para garantir a segurança e felicidade de pessoas na cidade. 

Walter Benjamin (1892-1940) filósofo que publicou “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”(1936). Neste ensaio, Benjamin elabora sobre a perda da “aura” da obra de arte dada as novas tecnologias que permitem a reprodutibilidade das obras. Dissolve-se os mitos do artista, do momento único criativo e também da individualidade da autoria criativa. A obra de arte passa a ser percebida também como um trabalho coletivo, o que é especialmente válido para casos como o cinema e a arquitetura.

Estruturalismo

Enquanto a fenomenologia (anos 50) enfatizava a percepção e o comportamento, o estruturalismo, que ganha força nos anos 60, se baseava na certeza da existência de estruturas básicas nos âmbitos da realidade e do pensamento. O movimento analisava a relação das estruturas e o uso da linguagem. As duas teorias de maior influência nesse período foram desenvolvidas por Robert Venturi e Aldo Rossi.

Robert Venturi (1925-2018) afirmava que a arquitetura é uma linguagem comunicativa. Ele percebia a arquitetura em continuidade com heranças históricas mas também em sintonia com as questões da época, como o avanço da ciência, a cultura do automóvel e viagens, a liberação da mulher e a pop art. A partir de sua parceria com Denise Scott Brown, arquiteta formada na Architectural Association de Londres, sua obra em conjunto ganha características de ativismo e um maior interesse pela cultura popular. Juntos eles escrevem “Aprendendo com Las Vegas”, publicado em 1977.

Denise Scott Brown em Las Vegas. Fonte Foto: archinect.com Crédito: the Archives of Robert Venturi and Denise Scott Brown

Aldo Rossi (1931-1997) foi um discípulo de E.N. Rogers. Em sua publicação “A arquitetura da cidade”, Rossi critica o que ele chama de “funcionalismo ingênuo”, considerando que não existe uma relação única entre forma e função. Ele fala da alma da cidade e percebe a cidade como o lugar da política e manifestações. Importante contribuição para crítica tipológica.

Manfredo Tafuri (1935-1994) formado em história da arquitetura na faculdade de veneza. Desenvolve a premissa da crise do movimento moderno. Em sua publicação “Projeto e Utopia”(1973) constata o fracasso das vanguardas e reafirma o caráter da arquitetura como instrumento ideológico. Intenção de inserir a arquitetura na história da cultura e a certeza de que a história é a base que justifica a existência e a finalidade de todas as obras.

Colin Rowe (1920-1999) nasceu em Rotterham, no Reino Unido, e estudou arquitetura na Universidade de Liverpool. Se mudou para os Estados Unidos, passou um tempo em Yale e eventualmente foi para Cornell. Desenvolveu ensaios comparando as casas de Corbusier com as villas de Palladio, o neoclássico ao modernismo e as obras de Mies Van der Rohe às de Louis Kahn. Em 1978, lançou junto com Fred Koetter o livro “Collage City”, onde transportou as suas análises de edifícios isolados ao plano urbano. Ele propôs um novo método para análise de projetos urbanos – figura-fundo. O fundo é visto como a cidade tradicional (memória) em sua mistura de funções, largos e praças, uma massa coerente, e a figura seria inspirada na cidade-parque moderna de Le Corbusier (utopia ou profecia), baseada na figura destacada, isolada, com funções separadas. Sua conclusão defende uma cidade formada pela colagem de fragmentos do passado e de utopias. 

Pós estruturalismo – teoria do caos e multiplicidade cultural

Durante os anos 80, muitos arquitetos começaram a produzir textos contextualizando os seus projetos no cenário da época, como foi o caso de Peter Eisenman e Rem Koolhaas (leia mais aqui). A Influência pós-moderna é aparente nos textos de koolhaas, de natureza fragmentada e de referências plurais. Em suas diversas publicações, koolhaas apresenta uma abordagem orientada mais pelo programa do edifício e suas condicionantes do que as noções estéticas de lugar. Para ele, o lugar é uma confluência de fluxos e acontecimentos. 

Ignasi Solá Morales (1942-2001) arquiteto e filósofo catalão cujas interpretações centravam-se na história local mas também percebia condição de dispersão, em sintonia com interpretações pós-estruturalistas como Gilles Deleuze, Peter Eisenman e Koolhaas. Também entendia o lugar como uma consequência de fluxos e acontecimentos. Em seu texto “Do contraste à analogia: novos desdobramentos do conceito de intervenção arquitetônica”, no livro de Kate Nesbitt, Solá Morales fala que, embora o modernismo tenha estabelecido como regra para intervenções o contraste entre o velho e o novo (Carta de Atenas de 1933, do CIAM), ele explica que a relação pós-moderna com o passado é bem mais complexa. Solá Morales defende que não é possível criar um único sistema de regras quando cada caso traz questões individuais. Ele exemplifica isso através de projetos de Gunnar Asplund, que já foi assunto aqui e o restauro do museu Castelvecchio por Carlo Scarpa, em Verona.

Regionalismo Crítico

Kenneth Frampton (1930) arquiteto, crítico, historiador e professor em Columbia, em Nova Iorque. Se formou também na Architectural Association de Londres. Em seu livro “história crítica da arquitetura moderna” o movimento moderno é tomado como uma corrente em evolução, cuja história não pode ser percebida de maneira unitária mas como uma história fragmentária e contraditória, na linha de Michel Foucault. Foucault usa o termo ‘heterotopia’ para descrever espaços que têm múltiplas camadas de significação e relações a outros lugares, cuja complexidade não pode ser vista imediatamente. Frampton defendia um regionalismo crítico – uma reação à internacionalização e perda da relação do objeto construído com o seu contexto. Montaner explica que este é um conceito confuso já que não é possível estabelecer parâmetros do grau de influência que o contexto deve ter em um projeto.

Montaner finaliza com uma breve descrição de pesquisas contemporâneas como o finlandês Juhani Pallasmaa, que expõe a necessidade de uma arquitetura humana relacionada aos sentidos além do visual, assim como o trabalho de pesquisadores americanos que estudam fenômenos de expansão urbana, como os subúrbios e as grandes rodovias. 

Conclusões

Montaner conclui levantando muito mais perguntas do que respostas. Qual deve ser o ponto de partida da crítica quando se há uma crise metodológica? Diante de crises contínuas e de uma realidade fragmentada, a atitude correta deve ser de resistência (como Giedion e Frampton) ou de aceitação e relativismo (Koolhaas e Solá Morales)?  Como a crítica consegue se manter relevante e contribuir para a produção de arquitetura? Ele encerra com uma excelente frase de Manfredo Tafuri, parafraseando Nietzsche: “como fazer para que o discurso da crítica, que deveria “romper e remover rochas”, não seja ele mesmo uma rocha?”

O que verificamos desta leitura é que, ao longo da história da crítica da arquitetura, há sempre um dualismo no debate. Seja entre arte e técnica, seja entre romper com o passado ou estabelecer conexões históricas, ou seja entre o regionalismo e o globalismo. Cada época traz as suas questões mas nunca há uma única resposta. A pluralidade enriquece a discussão. Percebemos também a evolução das análises e o surgimento de novas percepções. Iniciamos com uma análise restrita ao construído, depois sobre a qualidade do espaço vazio, sobre a percepção do observador, chegando à importância da memória, os simbolismos e até a questões sensoriais. 

Atualmente, o debate está centrado mais em torno de questões como espaços virtuais, as identidade das sociedade pós-coloniais, sustentabilidade e justiça ecológica, igualdade de gênero e acessibilidade universal. Muitas destas sempre fizeram parte da experiência humana mas apenas agora estão tomando o centro do debate.