“Skogskyrkogarden”, o cemitério projetado por Gunnar Asplund | Estocolmo, Suécia
22/03/2014

A primeira vez que ouvi falar desse projeto foi em uma aula de projeto, na Faculdade de Arquitetura de Lisboa (FAUTL). O meu então professor tinha o hábito de narrar algumas de suas visitas a grandes obras da arquitetura. Aproveitava-se de sua experiência física nos locais para exemplificar os conceitos de projeto que queria nos passar. Essas suas histórias prendiam a atenção de toda a turma, pois mostravam de forma apaixonada como a arquitetura transcende os desenhos – Falar de arquitetura é falar de espaços. Dentre as suas contundentes descrições, a que mais me marcou foi aquela sobre a sua ida ao cemitério projetado pelo arquiteto Gunnar Asplund, em Estocolmo.

Já se passaram muitos anos desde então e não me lembro de todos os detalhes sobre a sua visita. Guardei apenas algumas de suas percepções, dentre elas a sua descrição sobre os elementos que pontuam a paisagem e os materiais que demarcam a transição entre os ambientes. São percepções que me acompanharam durante a minha visita no ano passado.

Parece estranha a ideia de ir visitar um cemitério. O próprio programa já suscita uma série de considerações e reflexões existenciais, independente do desenho do projeto.  Conheço poucos cemitérios, mas os que eu já tive oportunidade de visitar me pareceram sempre tumultuados; as lápides são colocadas muito próximas umas das outras; a paisagem é bloqueada por um amontoado de esculturas; a circulação é feita por corredores finos, escuros e tortuosos. Esse retrato soturno é o oposto do que encontramos no “Skogskyrkogarden”, também conhecido como “The Woodland Cemetery”. O lugar é, acima de tudo, um parque. A apenas 20 minutos de trem do centro de Estocolmo, este local é um convite ao silencio e à contemplação.

Resultado de uma parceria entre os arquitetos Gunnar Asplund e Sigurd Lewerentz, o projeto levou o primeiro prêmio em um concurso realizado em 1915.  O cemitério foi construído aos poucos, sendo finalizado apenas na década de 40 e, em 1994, tornou-se parte dos patrimônios da Unesco.

Ao chegar ao local, deparamos-nos com um grande vazio em meio à cidade construída – o acesso é realizado através de um gramado em declive, livre de árvores e construções.  Tudo que avistamos a princípio é um caminho de pedras que segue a rampa linearmente, com uma largura adequada para a subida de um pequeno grupo de aproximadamente 4 pessoas lado a lado, e uma grande cruz, um ponto de fuga na linha do horizonte.  Estes dois elementos (o caminho e a cruz) humanizam a paisagem, trazendo as proporções do corpo do ser humano para o cenário.

A cruz e o caminho humanizam a paisagem

O crematório

A cruz no fim da ladeira pontua a paisagem. Ela nos direciona e, assim que a alcançamos, as primeiras construções se fazem presente. Estes são o crematório e as suas 3 capelas.  Estes edifícios são articulados por um vestíbulo, uma enorme cobertura que oferece abrigo contra as intempéries, embora não proteja completamente do frio por conta de suas aberturas laterais.  Este não encerramento permite um contato constante com a natureza. A escala monumental do vestíbulo nos apequena e nos eleva ao mesmo tempo, um sentimento enfatizado pela abertura zenital no meio da cobertura. Neste ponto, foi colocada uma escultura de três pessoas buscando uma ascensão – um gesto simples e dramático ao mesmo tempo.

Escultura sob abertura zenital

Detalhe do acabamento do pilar e o desenho das luminárias

Ao contrário do vestíbulo, os espaços a volta, dedicados à cerimônia, são pequenos e encerrados nas laterais. São espaços intimistas, o que permite a família escolher quem entra no recinto e com quem eles querem compartilhar esse momento. Ainda assim, a relação com o exterior prevalece através da ausência de uma cobertura.

Abertura no muro serve de acesso aos espaços de cerimônia. Imagem captura detalhe do desenho do piso demarcando transição entre os espaços
Espaços para a cerimônia. Encerrados nas laterais porém descobertos

Do vestíbulo avistamos um pequeno lago, um morro e, em seu cume, um recinto fortemente arborizado. Novamente um elemento que pontua a paisagem, atraindo o nosso olhar e chamando a nossa atenção. Seguimos dessa vez pelo gramado. Ao chegar lá, o silêncio dos nossos passos sobre a grama é substituído pelo barulho dos pedriscos. Nesse momento, damo-nos conta do nosso peso, do movimento do nosso corpo no espaço, da nossa existência. Esse é um dos únicos pontos no cemitério em que conseguimos avistar a cidade ao longe. Lembramos, portanto, que fazemos parte de algo maior.  Aqui foi também o primeiro lugar em que pude ver as lápides. O silêncio nos convida para uma interiorização.

Nota-se que o arquiteto não utiliza apenas elementos arquitetônicos no projeto, mas artifícios de paisagismo também.

Ao adentrarmos cada vez mais no cemitério, verificamos diferentes tipologias de capelas, cada uma permitindo a realização de cerimônias específicas. A organização dos setores com as lápides também varia. Em alguns casos, as lápides são verticais e se perdem entre as árvores gigantescas. Já em setores de paisagismo menos denso, as lápides são deitadas no chão como se pertencessem ao solo. Independente dessas variações, os túmulos são sempre bem discretos, com poucas demarcações, o que faz com que o conjunto todo se integre bem – os elementos fazem parte de um todo. A morte aqui não é retratada como algo sombrio a ser temido, mas manifesta-se como um processo natural, como o fim de mais um ciclo de vida. E para cada fim, há a esperança de um recomeço.

Capela
Lápides entre árvores
Lápides no chão, bem discretas

O ‘Skogskyrkogarden’ permite uma pluralidade de sensações. As intervenções pontuais trazem significado a um lugar aparentemente intocado; uma planície sem fim é interrompida por uma aglomeração de árvores; descampados são descontinuados perante fileiras de árvores dispostas linearmente; o céu, predominante no cenário, eventualmente some por completo por trás das folhas da mata densa.  São transições sutis que por vezes passam despercebidas.

Ao criar essa multiplicidade de ambiências e experiências, os arquitetos humanizam a paisagem natural. Tal atitude projetual reflete os conceitos do filósofo Martin Heidegger, que utilizava a ponte como exemplo de um símbolo que revela a paisagem. Encerro esse texto com um extrato de seu ensaio “Construir, Habitar, Pensar” :

“A ponte se estende lépida e forte sobre o rio. Ela não junta as margens que já existem, as margens é que surgem como margens somente porque a ponte cruza o rio (…) Com as margens, a ponte leva ao rio as duas extensões de paisagem que se encontram atrás delas. Põe o rio, as margens e a terra numa vizinhança recíproca. A ponte junta a terra, como paisagem, em torno do rio.”

— Martin Heidegger

 

Comentários

Joaquina Jorge | 2021-02-26 19:17:40

Gostei muito do seu trabalho e sensibilidade aqui expostos. Conheço esse cemitério e senti exactamente o que diz. Meu filho vive há dez anos em Estocolmo e levou-nos lá. Achei um bom lugar para viver depois de morrer. Até apetece! - quase foi o q senti. Bendita Arquitetura! Parabéns.